

Godofredo de Oliveira Neto
OUTRO
Conto contido no livro
Falando com Estranhos:
o estrangeiro na literatura brasileira,
Editora 7Letras, p. 252-256
O que ouvia eles cochicharem ou não tinha nexo ou era uma daquelas línguas faladas só dentro da casa de algum dos caras, mistura de alemão com holandês, como um amigo disse. Se fosse russo, polonês, ucraniano, italiano ou alemão também não entenderia, mas conseguia identificar de tanto escutar essas línguas desde criança trabalhando para os colonos na roça e na firma de terraplenagem.
(Maurino Xokleng Silva Santos chega mais perto do grupo de homens. Inicia-se ríspido diálogo)
Por que eu devo sair do rancho de madeira com toda a minha família? A resposta "dane-se a Funai , essa terra aqui é nossa desde a época dos nos-sos avós, é terra dos colonos", não corresponde à verdade. A terra é nossa, isso sim, vocês é que são os estrangeiros.
O gado vem amanhã.
Como assim, amanhã?
Amanhã, sim, e você e sua família têm que dar o fora. E por que cons-truiu a casa longe do núcleo?
A razão de ter construído a minha casa longe do núcleo da Reserva Duque de Caxias é problema meu. Meu filho menor tem problemas para dormir e grita a noite inteira, não quero incomodar os outros da tribo. O limite das nossas terras é lá no alto do morro, onde está a canela de mais de quarenta metros de altura, dá para ver daqui, lá na direita, então estou dentro do nosso território.
Pois é, meu filho, a coisa tá ruim para o teu lado.
Eu não sou filho de vocês, então não me chama de meu filho, e se vocês chegaram aqui no século XIX também não interessa, nós já ocupamos esta terra há mil anos. Sou formado em biologia na UDESC, em Florianópolis, sei os meus direitos e vou dar parte à polícia desta intimidação.
Sai do nosso bolso, nós que trabalhamos, o custo para manter toda essa reserva sem nada, mato puro, sai dos nossos impostos.
Se sou pago para dar aula na escola com os impostos de todos, como você diz, também é problema meu. Tenho contracheque federal. Amanhã vou cedinho com a minha família ao centro de José Boiteux, meu filho vai ao médico, voltamos de noite. Concordo em conversar com vocês depois de amanhã.
(O homem forte, cabelo ruivo, olhos azuis pintando a cara sardenta, mal dissimula o cabo da pistola sob a camisa. Há mais quatro sujeitos com cara amarrada. Um deles, cabeça raspada, moreno, cospe com regularidade após tragar a fumaça do cigarro de fumo de corda. Maurino, o índio Xokleng cercado pelos cinco homens, moradores do entorno da reserva, se afasta.)
Te cuida, bugre, resmunga um de cabelos escorridos e barriga proemi-nente, com o boné branco enviesado deixando uma parte do rosto exposta ao sol.
(Sete rapazes conversam animados num galpão de fazenda.)
Gente que ainda se alimenta de raízes e adora o sol, a lua e as estrelas não tem porque ser dono de terras. Tudo bem que o cara é formado e não come mais raízes, estou brincando, mas que é índio, é. Esta terra é nossa. Minha vó já cultivava arroz, milho, aipim e fumo bem ali onde o bugre construiu a porra da casa, ela sempre me contava sobre as lides do campo e a matança de bugres organizada pelo estado, o Martinho Bugreiro era herói em todo o Vale do Itajaí e até em Florianópolis. O governador recebia ele no Palácio. Tinha autorização para matar índio. Aquilo sim era um herói. Vamos pegar a terra de volta. Esses limites foram traçados recentemente por um bando de burocratas de Brasília que nunca trabalhou e defende os índios ninguém sabe por quê. Só se acham que a maneira de o Brasil progredir é fazer todo mundo viver como a indiarada! Vamos botar no Facebook que estamos de volta. Daí os polacos lá perto da ponte de Ibirama também vão pegar o pedaço roubado deles. Nessa hora é melhor católicos e protestantes trabalharem juntos. E assim o governo vai encontrar o fato consumado. Já estamos lá plantando e enriquecendo o Brasil e pronto. Já demos a nossa cota de sacrifício no passado. Como a gente sabe, os nossos avós não podiam falar italiano ou alemão durante a guerra, o Getúlio proibiu. Nem na padaria, nem na igreja, nem na escola, nada. Até as inscrições em alemão ou em italiano dos túmulos tinham que ser raspadas e apagadas. Túmulos, alguns que estavam ali desde mil oitocentos e tanto. Tabuletas em língua estrangeira eram queimadas. Meu avô, que só falava italiano do Vêneto, foi obrigado a tomar óleo de rícino aqui na praça porque rezou alto em italiano na missa de domingo. Morreu disso sem saber falar português. Trabalhava de sol a sol na plantação de milho enquanto a bugrada aí podia falar a língua deles à vontade e ficar na vadiagem.
(A exploração da madeira, troncos de madeira de lei com alto valor de mercado. Esse foi o primeiro benefício da invasão de parte da reserva no dia seguinte à ameaça dirigida ao índio Maurino. Munidos de celulares e tablets, os invasores monitoravam a eventual chegada das forças policiais. Um trator com cabos de aço, serras elétricas potentes, um jipe e um caminhão especial para transportar toras invadiram o matagal sob araucárias e garapuvus. Era julho, as temperaturas abaixo de zero na madrugada dissuadiam as autoridades da lei. Muito frio. Mas se fazia necessária uma ocupação rápida. A canela de quarenta metros de altura foi uma das primei-ras a ser serrada. Cerca de vinte cabeças de gado nelore foram soltas perto da casa do índio Maurino. No galpão, os jovens, já entupidos de vinho e cachaça, falavam cada vez mais alto.)
Somos brasileiros, mas da Europa. Frio e trabalho não assustam a gente. E pensem bem: uma reserva de bugres cercada por terras de colonos alemães, italianos, russos, ucranianos e poloneses é um caso único no mundo. Já veio até gente de universidade americana checar se era verdade e como a coisa funciona. Essa pouca vergonha tem que acabar. Vem aí a ampliação da barragem norte. O governo já desapropriou mil e quatrocentos hectares às margens do rio Hercílio, oitocentos e quarenta eram da reserva, no outro lado da casa do Maurino. O problema é a diferença de cor e de vida. Ficaram para trás. A nossa civilização cresceu e se desenvolveu. Eles não. A vida é uma competição. Perder ou ganhar. Os índios perderam o bonde da história. Civilização tosca, aliás, nem chamo bem de civilização. Amanhã vamos levar mais gado e cortar mais árvores.
(O ruivo pediu prudência. Que ninguém abrisse o bico para outro membros da comunidade branca. Um número grande desses patrício com a mesma origem europeia era metidinho a ajudar os índios. As igreias, tanto a católica quanto a evangélica, atrapalhavam muito. Todos combinaram raspar as cabeças, deveriam formar um grupo coeso e com personalidade. E bater forte se necessário.)
Ontem já botamos vinte cabeças lá perto da casa do índio beiçudo e deu para serrar algumas toras. Amanhã a gente repete. Vamos reverenciar o Martinho Bugreiro e mandar bala se for preciso.
(Força policial ocupa a reserva. Ouvem-se tiros. Gritos. Chega carro da imprensa.)
O soldado Valdir achou a cabeça do índio Maurino, estava no capoeirão lá perto do riacho.
E o corpo, sargento?
Ainda não encontramos, só os corpos da sua família. Até um menino que não deve ter mais de 4 anos teve o crânio esmagado. Maurino deu queixa ontem na delegacia de José Boiteux contra cinco indivíduos, essa denúncia foi a sua sentença de morte. Disse que podia identificá-los com facilidade. Segundo o relatório da delegacia, Maurino Xokleng da Silva Santos jogou pesado, falou de xenofobia e de intolerância, de roubo e de grilagern de terras federais. Mas disse que entende as diferenças culturais, que dá para conviver, é só ter vontade, que os colonos devem respeitar a identidade dos índios. Mas que ia revidar com armas se sua família fosse atacada. Está no processo da polícia. Explicou que o território é deles, que os índios vivem as duas culturas, que os colonos também deviam entender a cultura indígena. Falou do padre e do pastor, sempre propondo ações pacíficas, mas a tribo não entende por que os brancos podem atacar e eles não. A sociedade trata eles como "outro", e até os formulários da delegacia são ambíguos, ainda segundo depoimento relatado pelo escrivão da 17ª de José Boiteux. Maurino exigia, como brasileiro, cidadania plena para si e para a sua tribo, está aqui escrito na cópia.
Onde estão os presos, sargento?
Os cinco assassinos estão algemados lá na viatura, dois conseguiram fugir em direção a Rio do Sul. Devem ser os mesmos denunciados pelo índio. São todos aqui da região. Todos com curso superior, só um não. Apreendemos cinco motos, cinco capacetes, um soco inglês, porretes e duas pistolas prateadas de alto calibre. Foi apreendida uma espingarda calibre 12 na casa do índio. A Polícia Federal segurou na saída de Ibirama um caminhão com dez cabeças de gado e um trator vindos em direção da Reserva. Tem mais gente envolvida.
Aqueles seguranças da serraria que mataram dois índios no mês passado estão presos?
Não. Foram soltos logo. Tinham sido provocados pelos índios, naquela vez. Foi isso. Mas o Maurino, neste caso agora, até que era um cara boa praça, pode botar aí no jornal da senhora que eu disse.
